65: Dilemas Éticos e Considerações
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Introdução
Todo o cuidado urológico pediátrico envolve a aplicação de princípios éticos no dia a dia. Ocasionalmente, esses princípios ganham destaque à medida que ampliamos os limites terapêuticos, o pensamento social evolui ou os avanços médicos desafiam o pensamento jurídico (ou mesmo político). As terapias de afirmação de gênero representam tal arena, visto que o cuidado à população transgênero se desenvolveu de forma rápida e desigual em todo o nosso país. De modo semelhante, o cuidado a neonatos e lactentes com distúrbios da diferenciação sexual (DSD) tornou-se foco de ativismo social e político, com potencial de influenciar o tratamento. Ambas as áreas assumiram importância ética em razão dos princípios defendidos.
Como discutiremos, os conceitos éticos que orientam os cuidados a pessoas trans—justiça, beneficência e autonomia—são ampliados. Para recém-nascidos e lactentes com DSDs, para os quais se considera cirurgia relacionada ao gênero, esses mesmos princípios se aplicam, mas com tensões diferentes e fortes. Para ambos, o consentimento informado assume importância particular.
Princípios Éticos
Beneficência
Na ética biomédica, o conceito de beneficência abrange ações destinadas a proporcionar benefício líquido a um paciente.1 Essas ações incluem proteger os direitos do paciente, resgatar um paciente do perigo e oferecer tratamento para reduzir o desconforto do paciente. Beneficência significa que devem ser oferecidos aos pacientes aqueles tratamentos em que os benefícios superam os danos. Quando o objetivo do tratamento médico é produzir um efeito globalmente positivo na saúde do paciente, às vezes não é claro quais tratamentos podem beneficiar mais um paciente; nesse caso, a beneficência pode requerer a tomada de decisão compartilhada, em que um profissional de saúde apresenta opções e o paciente e o profissional escolhem juntos o melhor curso de ação.
Paternalismo é o conceito de que um indivíduo com poder (neste caso, um profissional de saúde) se baseia no próprio julgamento para tomar decisões por alguém com menos poder (neste caso, o paciente).1 O paternalismo pode resultar se o princípio da beneficência for seguido de forma excessivamente estrita e subjetiva. Ao buscar a beneficência, um profissional de saúde pode permitir que seu julgamento sobre o curso de ação mais benéfico se sobreponha às preferências do paciente.2 Assim, embora seja importante defender o princípio da beneficência, é igualmente importante equilibrá-lo com outros princípios éticos discutidos mais adiante no capítulo.
Não maleficência
A não maleficência é o princípio ético que descreve não infligir dano a um paciente.1 Na ética biomédica, idealmente os pacientes não são prejudicados pelos seus cuidados médicos. Dano é um termo amplo, que inclui ofensa, aborrecimento, desconforto ou outros desfechos negativos que podem ou não ocorrer em decorrência de má conduta. Ao contrário da beneficência, que envolve fazer o bem ativamente ou prevenir danos, a não maleficência envolve evitar ações que possam causar dano ou ponderar os riscos e benefícios de uma determinada ação. O princípio da não maleficência exige que os profissionais de saúde não imponham dano nem riscos de dano. O dano pode ocorrer tanto de forma não intencional como resultado de ações ou omissões, como também pode ser consequência de comportamento temerário que coloca o paciente em risco. É responsabilidade dos profissionais de saúde evitar a tomada de decisões apressadas e o comportamento impulsivo, bem como antecipar potenciais desfechos negativos da terapêutica e tentar preveni-los. No contexto da atenção pediátrica, isso pode envolver antecipar problemas que possam resultar de tratamentos na infância quando os pacientes se tornam adultos e tentar mitigá-los. Isso também pode exigir que os profissionais de saúde adiem tratamentos irreversíveis ou potencialmente difíceis até que os pacientes alcancem uma idade na qual estejam melhor aptos a participar das discussões a respeito de tais tratamentos.
Justiça
O princípio que abrange a equidade na ética biomédica é a justiça.1 A justiça implica que todo paciente deve ter acesso equivalente à assistência médica, independentemente de onde viva, de sua origem ou de suas circunstâncias financeiras. A consistência na alocação de terapias é um aspecto importante da justiça na assistência médica. As leis locais podem variar em todo o país, comprometendo a justiça na prestação da assistência médica. Em áreas onde há leis que impedem o uso de determinadas terapias em pediatria, por exemplo, os pacientes pediátricos podem ser legalmente impedidos de receber tratamentos disponíveis em outras partes do país. Assim, quando as leis locais contrariam a melhor prestação possível de cuidados, pode caber aos profissionais médicos defender, fazer lobby ou, de outra forma, buscar uma distribuição mais justa da assistência médica.
É especialmente importante aplicar o princípio da justiça no tratamento de pacientes potencialmente vulneráveis, como a população pediátrica. Pacientes pediátricos mais jovens podem não compreender os benefícios e os danos das terapias médicas, e pacientes adolescentes ainda não alcançaram a maturidade para serem plenamente autônomos. Além disso, prevenir a exploração ou a coerção de pacientes vulneráveis se enquadra no princípio da justiça. Assim, pacientes que são legalmente incapazes de tomar decisões por si mesmos devem ser avaliados quanto a evidências de tal coerção. Assim, ao prestar cuidados médicos a uma população vulnerável, os profissionais devem considerar o princípio bioético da justiça, prestar cuidados de forma justa e igualitária e prevenir a coerção dos pacientes.
Autonomia/Respeito pelas Pessoas
Respeito pelas pessoas, também denominado respeito pela autonomia, é o princípio moral que protege o direito do indivíduo à autodeterminação.1 O direito de tomar as próprias decisões sobre cuidados de saúde beneficia os indivíduos com capacidade, permitindo-lhes assumir o controlo dos seus cuidados de saúde. Os adultos com capacidade conseguem claramente compreender as consequências das decisões que tomam. No entanto, na população adulta, a capacidade pode ser temporariamente ou permanentemente comprometida por doenças, ignorância ou coação. Em contraste com os adultos, é menos claro na população pediátrica quando um paciente passa a ser capaz de compreender plenamente a tomada de decisões médicas. À medida que os pacientes pediátricos se aproximam da idade adulta, têm cada vez mais opiniões e desejos de tomada de decisão autónoma. No entanto, os pais geralmente participam na tomada de decisões do menor não emancipado até que este atinja a idade legal da maioridade (18 anos nos EUA). Isto significa que os profissionais de saúde devem conciliar o respeito pelos desejos tanto do paciente pediátrico como dos seus pais. Quando esses desejos se alinham, é muito mais fácil prestar cuidados de saúde do que quando estão em conflito. Surgem dilemas éticos quando os pacientes pediátricos têm preferências contrárias às expectativas dos seus cuidadores.
A autonomia envolve indivíduos que agem com intenção, são capazes de compreender suas ações e não estão sujeitos a influências coercitivas. A responsabilidade por assegurar o respeito às pessoas pode recair sobre o profissional de saúde. Isso envolve não apenas oferecer opções e respeitar os desejos dos indivíduos. Os profissionais de saúde podem ser responsáveis por advogar pelos cuidados dos pacientes ou por fornecer educação para facilitar o consentimento informado. No caso da população pediátrica, os profissionais de saúde podem se ver advogando pelo melhor cuidado possível para o paciente, educando o paciente e seus cuidadores ou buscando autorização legal quando as preferências dos cuidadores entram em conflito com o que parece ser o melhor interesse da criança.
Distúrbios da Diferenciação Sexual
O manejo do paciente com DSD pode ser complexo do ponto de vista médico e cirúrgico. Mas, sem dúvida, o aspecto do cuidado que é mais delicado do ponto de vista ético é a atribuição de gênero no contexto de ambiguidade genital.
Para um neonato ou lactente, a primeira questão é determinar quem deve ser o decisor apropriado. A lei exige um decisor substituto adulto. Historicamente, os pais têm sido considerados as partes legítimas com base em um padrão de “melhor interesse”, que se acredita representar aquilo que pessoas razoáveis considerariam o maior benefício líquido entre as opções disponíveis.1 A lei tem presumido que os pais, em geral, agem no melhor interesse de seu filho e, portanto, o Estado deve ser relutante em interferir. Também se acredita, de modo geral, que somente os pais podem compreender plenamente os valores inerentes à sua família ao avaliar prioridades médicas.
Há dois desafios ao princípio de que os pais são legítimos decisores substitutos para seu filho. O primeiro baseia-se nos requisitos para a tomada de decisão substituta, dos quais há quatro: 1) competência—a capacidade de fazer julgamentos razoáveis; 2) estabilidade emocional; 3) parcialidade em favor dos interesses do paciente e 4) conhecimento e informação adequados. No contexto da tomada de decisão para o lactente com DSD, o maior desafio para a maioria dos substitutos seria o 4º requisito—compreensão adequada para tomar a melhor decisão. Isso não é necessariamente uma função da inteligência ou do nível educacional dos pais, mas de limitações na compreensão médica dessas condições. Esse requisito impõe à equipe médica responsável pelo tratamento o ônus de fornecer informações completas e compreensíveis, para que os pais se sintam informados ao darem seu consentimento para o tratamento.
O segundo desafio à tomada de decisão substituta pelos pais diz respeito aos limites dessas decisões. Pode-se argumentar que o gênero é tão fundamental para o indivíduo que permitir que qualquer pessoa que não o próprio paciente influencie significativamente essa característica pessoal é inadequado. Essa linha de raciocínio é coerente com a preservação de “um futuro aberto” para o adulto que o bebê virá a ser.
Supondo um cenário em que os pais se sintam bem informados e confortáveis com a responsabilidade de tomada de decisão médica substituta para seu filho, pode-se considerar as potenciais decisões cirúrgicas a serem tomadas. O diagnóstico de DSD mais comum que levanta questões cirúrgicas é a hiperplasia adrenal congênita (CAH) em indivíduos 46XX do sexo feminino, em que a genitália externa é virilizada no período pré-natal devido a níveis suprafisiológicos de testosterona (T).3 Isso pode resultar em clitoromegalia e formação de um seio urogenital no qual tanto a vagina quanto a uretra drenam. Internamente, a criança apresenta anatomia feminina normal. Os níveis elevados de T levantam a possibilidade de que possa ocorrer imprinting hormonal cerebral, embora muito raramente essas pacientes se identifiquem como do sexo masculino quando o diagnóstico é feito no período neonatal. Assim, as possíveis questões cirúrgicas enfrentadas pela paciente virilizada incluem a exteriorização da vagina, que é clinicamente necessária a longo prazo para a função do trato reprodutivo, e a redução do clitóris, que pode ser psicologicamente importante, mas não necessariamente essencial do ponto de vista médico. Além disso, a fertilidade futura como mulher tem sustentado a manutenção do gênero feminino nos casos mais virilizados.
Um princípio importante no manejo de crianças com DSDs, consistente com a preservação de opções futuras, é evitar procedimentos cirúrgicos irreversíveis.4 Para a criança com CAH, a exteriorização da vagina é um procedimento reversível no sentido de que uma vaginectomia poderia ser realizada caso essa criança se identificasse como do sexo masculino mais tarde na vida. Já a redução do clitóris, por outro lado, representaria um procedimento irreversível, pois implica a remoção de tecido erétil hipertrofiado que atualmente não pode ser substituído. Dentre esses dois procedimentos, a vaginoplastia é certamente o mais urgente em termos de tempo, pois pode ser realizada com consideravelmente menor morbidade e maior segurança em crianças pequenas, com idade entre 6 e 18 meses. A redução do clitóris pode ser realizada com segurança em meninas púberes, em uma idade de assentimento significativo e identidade de gênero estabelecida, protegendo assim a tomada de decisão autônoma da própria paciente.
O dilema que confronta os pais de uma criança com CAH (ou outro DSD) e ambiguidade genital é determinar, por si mesmos, o que representa o melhor interesse da criança. O adiamento de uma decisão sobre a cirurgia implica a escolha de um caminho que terá suas próprias implicações para o desenvolvimento da criança. Há poucos dados sobre os efeitos da ambiguidade genital externa no desenvolvimento psicológico da criança. Portanto, aqueles que possam argumentar a favor de uma moratória cirúrgica para esses distúrbios (como tem ocorrido na Europa) têm agido sem informações sobre suas consequências. Na ausência de maior certeza médica, a deferência às decisões dos decisores substitutos parentais parece respeitosa e razoável.5
Cuidados para a população com não conformidade de gênero
A população pediátrica transgênero e com não conformidade de gênero representa um grupo no qual há vários dilemas éticos para os profissionais de saúde. Na população adulta com disforia de gênero, geralmente é claro que o próprio paciente deve tomar as decisões relacionadas às terapias de afirmação de gênero. Entretanto, na população pediátrica, pode ser menos claro se os pacientes compreendem plenamente as decisões, exigindo consideração pelo princípio do respeito às pessoas.1 Além disso, é importante trabalhar com pais e cuidadores para maximizar o cuidado e minimizar o dano, incorporando assim os princípios da beneficência e da não maleficência.1 Por fim, tentar fornecer cuidados de afirmação de gênero ideais para todos os indivíduos com disforia de gênero, independentemente da idade, encarna o princípio da justiça.1
Envolvimento dos pais
Os cuidados na população pediátrica costumam ser supervisionados por um dos pais ou por um responsável, que tem influência sobre as decisões tomadas pelo paciente pediátrico ou toma decisões em seu nome. O princípio bioético do respeito pelas pessoas é, portanto, relevante quando os profissionais de saúde tentam oferecer cuidados de afirmação de gênero a pacientes menores de idade. Como a falta de cuidados de afirmação de gênero pode ter um impacto psicológico tão negativo, é imperativo trabalhar com os pacientes e seus cuidadores para oferecer o tratamento.6 Os pais normalmente tomam decisões tendo em mente o melhor interesse da criança, mas às vezes, especialmente em situações emocionalmente carregadas, a tomada de decisão dos pais pode ficar comprometida.7 Em situações em que o menor e os pais estão em desacordo, há precedente para facilitar o cuidado do menor quando possa experimentar sofrimento significativo por não receber tais cuidados,6,8
O envolvimento dos pais é importante no cuidado do paciente pediátrico ou adolescente transgênero e está associado a melhores desfechos de saúde física e mental nessa população.9 Assim, um papel fundamental dos profissionais de saúde na prestação de cuidados a pessoas transgênero é incentivar o apoio dos pais aos pacientes pediátricos transgênero. Curiosamente, um estudo demonstrou que crianças e adolescentes transgênero avaliaram o apoio que receberam de seus pais mais alto do que os próprios pais avaliaram sua capacidade de fornecer esse apoio.9,10 Esse achado pode indicar que os pais conseguem desempenhar um papel de apoio a seus filhos, apesar do desconforto com o processo de transição. Portanto, é importante que os profissionais de saúde avaliem as atitudes dos cuidadores e promovam comportamentos de apoio nessa população.
Um estudo avaliou as reações de pais e cuidadores ao que os autores denominaram “momentos decisivos” no desenvolvimento da identidade de gênero de seus filhos.9,10 Esses eventos incluíram tomar conhecimento da identidade de gênero do paciente, o desejo da criança de mudar o nome ou os pronomes, ouvir descrições da disforia de gênero de seu filho e ouvir seu filho expressar interesse por temas relacionados à identidade de gênero.9,10 Muitos pais relataram precisar de tempo para se ajustar a essas mudanças, com uma reação inicial negativa seguida de aceitação. Esses “momentos decisivos” correspondem a temas que podem ser discutidos como parte das consultas médicas de uma criança transgênero e, assim, incumbe aos profissionais de saúde facilitar a comunicação entre pacientes e seus cuidadores e promover a aceitação por parte dos cuidadores.10
Transição para os Cuidados de Adultos
Um aspecto interessante da população pediátrica é que, inicialmente, ela é acompanhada por especialistas pediátricos, mas, presumivelmente, na adolescência tardia ou no início da terceira década de vida, fará a transição para o cuidado por profissionais que atendem adultos. A necessidade de transição para o cuidado de adultos impacta de forma singular o princípio da beneficência, pois é preciso equilibrar a oferta de cuidados de alta qualidade entre especialistas pediátricos e de adultos. Os pacientes passam a confiar em seus profissionais e cirurgiões pediátricos e podem enfrentar dificuldades na transição para o cuidado de adultos. Uma abordagem baseada em equipe, incluindo a participação de profissionais e cirurgiões que cuidam de adultos, pode melhorar essa transição.
Considerações Cirúrgicas
Pessoas transgênero podem considerar cirurgias de afirmação de gênero enquanto ainda são menores de idade. A disponibilidade de cirurgia de afirmação de gênero para menores se insere nos princípios éticos de justiça e respeito às pessoas. Embora pacientes pediátricos sejam geralmente considerados incapazes de tomar tais decisões, o momento em que adolescentes conseguem compreender adequadamente o caráter permanente das intervenções cirúrgicas permanece intensamente debatido. A condição mais justa permitiria que tais opções estivessem disponíveis para pacientes transgênero e não conformes com o gênero assim que alcançassem a maturidade para compreender plenamente as implicações de suas decisões. Essa disponibilidade também maximizaria o respeito às pessoas. No entanto, não está claro exatamente em que idade os indivíduos alcançam a maturidade necessária, e isso provavelmente varia de pessoa para pessoa. Um estudo realizado na Califórnia, conduzido para avaliar padrões de encaminhamento para serviços de afirmação de gênero entre 2015 e 2018, incluiu 104 casos de cirurgias de afirmação de gênero em menores, normalmente realizadas entre 14 e 18 anos.11 A maioria dessas cirurgias foram mastectomias de afirmação de gênero, mas houve casos de histerectomia, vaginoplastia e faloplastia/metoidioplastia nessa população.11 As vantagens do manejo cirúrgico em menores incluem os pacientes concluírem a transição física com apoio dos pais e antes de saírem de casa para a faculdade ou trabalho. No entanto, dado o caráter permanente de tais cirurgias, que tipicamente implicam esterilização, muitos profissionais adiam o manejo cirúrgico até após a maioridade.8 Um foco em maximizar as opções futuras fornece uma orientação útil. Em muitos casos, simplesmente bloquear a puberdade até que a pessoa atinja a idade adulta mantém as opções cirúrgicas em aberto, ao mesmo tempo que permite a transição social e previne mudanças sexuais secundárias indesejadas no corpo associadas ao sexo de nascimento.
Fertilidade
As chamadas cirurgias “bottom” de afirmação de gênero geralmente implicam gonadectomia e, portanto, são procedimentos esterilizadores. As considerações sobre a fertilidade futura envolvem os princípios da beneficência e da não maleficência. Assim, avaliar as atitudes de pessoas transgênero em relação à fertilidade futura é importante para fornecer o cuidado adequado. Em uma pesquisa aplicada a adolescentes transgênero e não binários, cerca de 16% expressaram desejo de ter filhos biológicos no futuro.12 No entanto, algumas pessoas relatam disforia de gênero associada a procedimentos de preservação da fertilidade, como uma visita a um banco de sêmen.12 Assim, o equilíbrio entre a beneficência e a não maleficência pode ser desafiador. Por um lado, alguns jovens transgênero desejam ter filhos biológicos no futuro e podem querer preservar essa opção. Por outro lado, a preservação da fertilidade pode induzir sentimentos de disforia de gênero. A tomada de decisão compartilhada é fundamental para apresentar cuidadosamente as opções ao discutir fertilidade nessa população. Além disso, adiar terapias esterilizantes até que as decisões sobre fertilidade tenham sido tomadas permanece prudente.
Aspectos legais
As leis têm o potencial de afetar, tanto positiva quanto negativamente, a justiça para pessoas transgênero e de gênero não conforme. Leis que limitam terapias de afirmação de gênero, mesmo quando recomendadas ou supervisionadas por profissionais de saúde, reduzirão as opções para pessoas de gênero não conforme, especialmente quando redigidas de modo a impedir até mesmo terapias temporárias. Além disso, leis discriminatórias aprovadas localmente podem reduzir a disponibilidade dessas terapias, o que também é injusto. Por outro lado, leis destinadas a punir a discriminação ou o bullying podem impactar positivamente os pacientes.
Em 2021, 22 estados tinham apresentado projetos de lei que limitavam os cuidados médicos de afirmação de gênero na população pediátrica e 1 estado, Arkansas, havia aprovado tal legislação.13,14 Algumas das leis propostas bloqueiam a terapia de afirmação de gênero mesmo com o consentimento dos pais.13 Profissionais de saúde têm criticado esse tipo de legislação, observando que ela politiza os cuidados de saúde e impõe por lei a prestação de cuidados que se afastam dos padrões de prática aceitos.13 Além disso, esses profissionais observaram que essas leis afetam negativamente a saúde mental dos pacientes e reduzem o acesso desses pacientes aos cuidados de saúde.13 Essas leis podem reduzir ou eliminar a cobertura de seguro para pacientes que desejam realizar a transição de gênero.14
Leis que regulam o tratamento de indivíduos com diversidade de gênero também dissuadem profissionais de saúde devido ao medo de consequências legais decorrentes da prestação de cuidados.13 Leis, como a HB1570 do Arkansas, permitem que ações legais contra profissionais médicos que prescrevam terapias de afirmação de gênero sejam movidas pelos pais do paciente durante toda a infância e pelo próprio paciente durante 20 anos na vida adulta.14 Leis desse tipo podem dissuadir profissionais de tratar indivíduos com diversidade de gênero ou impactar sua escolha de especialidade.13 Além disso, é provável que indivíduos interessados em praticar medicina de afirmação de gênero se estabeleçam preferencialmente em estados que não tenham tais leis. O princípio da justiça exige a disponibilidade de profissionais para que o cuidado esteja prontamente disponível às pessoas com disforia de gênero que dele necessitam. Assim, leis como esta afetam negativamente a prestação de cuidados médicos justos.
Conclusões
Os princípios da bioética têm um impacto significativo na prestação da assistência cirúrgica pediátrica. Ao tentar oferecer um cuidado justo com respeito à autonomia do paciente, a população pediátrica é particularmente vulnerável devido à sua condição legal de menores e à imaturidade mental e emocional real ou percebida. Esses desafios na prestação de cuidados pediátricos éticos são evidenciados pelas populações de pacientes com DSD e com não conformidade de gênero. Equilibrar as preferências do paciente e as expectativas dos pais pode contribuir para dilemas éticos para o profissional de saúde pediátrico. Além disso, a prestação de cuidados éticos pode ser ainda mais complicada pelas leis locais. A ênfase em opções não permanentes antes da maioridade, a tomada de decisão compartilhada e uma abordagem baseada em equipe ao fazer a transição para o cuidado do adulto podem aliviar as dificuldades éticas relacionadas ao cuidado nessas populações.
Leituras recomendadas
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Referências
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Ultima atualização: 2025-09-21 13:35